[Leia ouvindo Just Like a Woman, Bob Dylan]
A guria
em pé no ônibus não, e nunca, quis contar o que estava sentindo - e o que
causava suas olheiras - ao sair de casa. Tampouco se pôs a falar quando fizeram
um mutirão de três pessoas da família para questionarem sobre faculdade e
namorados. Não mencionou o acontecido de quinta-feira e mordeu alguns pedaços
de maçã. A realidade, de poucos instantes duradouros até o fim da semana, que
ninguém quis perceber foi que toda aquela pressão e frequência de questões
somente a fizeram fugir mais depressa. Ela também não sabia as respostas e subiu
a rua na alta velocidade de um pé depois do outro. A guria não, e nunca, olhou para
os lados ao atravessar, porque sua audição de menina inconsequente sempre a fazia
acreditar que o caminho estava livre. Fora de casa a liberdade gritava em seus
ouvidos.
Ela tinha
cabelos escuros sem cor definida, acostumados a serem presos no alto da cabeça
que sempre doía - por enxaqueca ou ressaca. E, do meu banco até ela, olhava em
seus olhos que buscavam os detalhes emocionais e não enxergavam nada de
material à primeira vista, pois nunca foi dada aos objetos e sempre sentiu
demais o que ninguém mais poderia entender. Sua boca se movia pouco durante o
dia e, dispersa, se mantinha fechada enquanto todas as palavras corriam
desesperadas pela mente. Parecia distraída, mas estava intensamente
compenetrada nas pseudo-resoluções amorosas. E, se caso mostrasse muito os
dentes em um riso, causava motivo de estranheza. Não era habituada a essa
abertura dos lábios e, assim, aqueles que estavam ao seu redor também não eram.
Por dentro: tinha fígado desgastado, pulmão meio ruim, e coração com peças
faltando, perdidas ou quebradas; peças que o serviço especial de consertos
humanos não tinha no estoque.
A guria
em pé no ônibus, com o braço direito esticado para segurar a barra amarela de
apoio, e essa minha visão dela não escapa em um segundo sequer, não se vestia
tão bem. Era só uma calça cinza e larga com uma blusa indiana trazida por um
amigo que há tempos não fazia mais contato. Também não tinha ritmo na voz,
contava piadas como se fosse música e cantava músicas como se fosse piada. E nunca,
ela que era tão cheia de nuncas, deu
ouvidos a quem tentou corrigir sua postura. Quanto mais pensava, mais entortava
a coluna. Não precisava dar ouvidos aos outros, afinal, porque seus ouvidos só escutavam,
desde quando ela ainda tinha jeito de mudar até se tornar aquilo para a
eternidade, Bob Dylan e Neil Young.
Não era,
também, dada aos acertos; era somente uma coisa corriqueira sem esperanças. Ela
era um pequeno erro por fora, um caos por dentro e uma noite de distúrbio que
durava o tempo inteiro. E, ainda insuficientemente perdida, quis se estragar um
pouco mais ao se render a uma pessoa só, que viajou por todo seu corpo até
encontrar seus caminhos sem saída, dar meia volta e partir. Seus muros finais
machucavam e, aquele que tentou enfrentar as tais barreiras, não aguentou. Ao
ir embora, na fuga da escapatória contra vontade dela, quebrou mais algumas de
suas peças e deixou outras tantas falhas. Sem explicação, se tornou o homem que
quis-e-largou, assim, bem rápido.
Acontece
que, antes que ele fosse, tirou-a do lugarzinho de aceitação.
Ela já
era a guria da rotina comum que vivia em completa estranheza e nós sabemos.
Você agora é cúmplice por entendê-la. Ligava o rádio para se desligar, comprava
quase nada além de cigarros, falava pouco e escrevia livros de cem mil
palavras. Ela subia as ruas, descia as ruas, mas ninguém a via.
E ele
apareceu. Por que diabos, entre tantas pessoas de tantos mundos de bairros
daquela cidade estreita, ele foi aparecer na frente dela? O rapaz parou e disse
que reparou naquele jeito da guria de se esgueirar paredes afora para chegar em
locais que não queria estar. Disse que gostou daqueles risos, pelo simples fato
de serem raros. (Ela quis sorrir mais, mas o elogio era pelo de menos). E até ousou
comentar, na frente de uma multidão de seis pessoas, que ela era a melhor
pessoa que ele já havia conhecido, com aquela falha de nascença na sobrancelha,
com aquela única mecha loira por baixo do cabelo preto, com a voz de atriz de
filme francês falando português; e com o dom de fazer macarronadas. Ele sabia
que o que ela sentia era tão forte que alcançava seu esôfago como um soco e
doía também.
Depois de
um tempo, além de dizer, demonstrava. Passava horas e horas deslizando alguns
dedos por seus braços, seios e costas, enquanto ficavam deitados. Ele gostava
de fazer cafuné, causar arrepios, tocá-la. Ela se sentia tão dele, que se
esquecia do peso que era ser dela mesma. E a garota lembrava bem daquele dia em
que, não se sentindo boa para mais ninguém, correu até ele em um ritmo
frenético e, antes de sentir medo por talvez não encontrá-lo, avistou-o no meio
do caminho, e ele disse:
- Estava indo te ver.
Só ela
soube o quanto aquelas quatro palavras significaram, pois não era ela sozinha
fazendo de tudo para salvar uma relação crua, eram os dois super aquecidos se
encontrando sem suas salvações. Estavam lutando um pelo o outro. Ele fazendo um
bem que ela precisava, e ela se recompondo para fazer jus ao bem recebido.
Por que é
que alguém foi dizer que gostava daquilo tudo? Daqueles defeitos em um corpo
com estrias desenhadas, daqueles defeitos em uma mente com imprecisões. Depois dos
primeiros elogios, a guria quis mudar a cor do cabelo, quis olhar quantas
cadeiras vazias restavam nos locais e procurar as de-dois-para-dois, quis falar
sobre o que não sabia, apenas para continuar recebendo-os. Mesmo assim, os
pedaços defeituosos de dentro ainda estavam lá, sem remendos, sem cola, sem
costura, sem novas instalações.
Quando aquele
certo alguém disse que gostava dela, não enxergou as músicas folks que
percorriam suas artérias. Gostou por fora e um cadinho de dentro. Não havia
visto o espírito livre e zombeteiro, a vontade de amar por acaso, rápida e
intensamente, e os planos repentinos de ir embora a qualquer hora. Não havia
visto que ela não precisava de acompanhante, mas de alguém com coragem de
segui-la. E quando descobriu esses detalhes - repentinamente quando as músicas
altas dos fones dela escaparam para a sala de estar -, não quis ficar.
Por que é que alguém foi dizer que
gostava daquilo tudo? Antes daquilo, a garota ainda sabia viver um pouquinho
bem, não queria se trocar por uma nova geração. Depois daquilo, de estar toda mudada
para se adaptar de mansinho, mostrando o sorriso amarelo um pouco mais e
suavizando lentamente seus toques para agradar aquele moço que sabia acariciá-la
tão bem; depois de ter sido melhor para ele apenas para ser melhor para ela mesma
também, não soube mais quem seria sozinha. A liberdade se comprimiu em uma
pequena necessidade de ser amada.
A guria
em pé no ônibus segurava o choro. E eu não era mais eu, era só, e infelizmente
só, o rapaz que havia deixado-a daquela maneira. Quando chegou ao seu destino,
puxou a corda de parada, olhou a luz vermelha no topo da porta automática,
olhou de soslaio para o rapaz que, por coincidência foi parar naquele mesmo veículo
naquela manhã, e desceu para andar por vias eternas de desconhecimento dele. O folk permaneceu tocando durante o
trajeto e ressoando nos ouvidos de todos. Mas só ela sabia sentir.
Comente e vote no Wattpad.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigada pela visita, por ler e comentar. Retorne sempre que sentir vontade.