novembro 20, 2015

Autofuga

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Tive que ir embora. Eu gostava de estar ali com ele, gastando todo o tempo que eu não poderia ganhar sem sua companhia. Perdíamos horas e horas juntos entre frases que significavam três ou quatro coisas de uma vez e olhares que faziam mil apelos. Mas ele, com seu charme de homem quase-resolvido da vida, não era só, e não era meu. Sua liberdade estava atada a outra, não completando minhas lacunas livres. Ela apareceu, o outro eixo da vida dele. Eu levantei e não soube me despedir, perdi a voz - talvez um pouco de adrenalina-melancólica corresse por mim. A felicidade ficou na minha marca de batom em seu copo de vinho, camuflando-se em saudade logo que saí.

Eu andei pela rua sendo um corpo invisível, motivada pela vontade de desaparecer, querendo ser um ponto de localização roubado do mapa. Mas ninguém poderia, nem iria, me roubar dali e eu precisava seguir em frente. Já fazia alguns minutos, quase meia hora, que havia saído da casa dele, e agora tentava chegar até a minha. A cada passo lento e sem som, sozinha, eu subia pelo meu caminho, sentindo a humilhação tomando meu corpo por inteiro. Estava devastada como uma árvore caída no meio de uma tempestade, uma árvore que não poderia nunca mais ficar de pé e nem bonita para ser admirada. Ia daquele jeito como se rastejasse, humilhada por ter sido encontrada no flagra ao lado dele. Justo dele que não era e nunca poderia ser meu.

O dia ia bem enquanto era somente de nós dois. Quando ainda só existia eu e ele, conversando sobre o que não tínhamos certeza, adorando nossas dúvidas, e incompreendendo o que há de mais lindo para não se entender. Éramos, àquela altura, cúmplices de um crime semi-perfeito. Sabíamos o quanto era errado nos render aos nossos encontros e falar sobre o que não tínhamos coragem de falar com nenhuma outra pessoa. Não poderíamos ser tão completos daquele jeito que acontecia, como peças se encaixando perfeitamente, pois não era de nossa obrigação nos pertencer. Ele já tinha alguém para amar, alguém que não era eu. Enquanto eu, sem ele, já estava certa de não amar mais ninguém. O que fazíamos juntos ali? Arriscamos tanto, talvez pela vontade incessante de nos ver tão perto, que fomos encontrados.

Quando ela chegou, ela que era dele, deixei meu espaço vazio ao seu lado, de cabeça baixa, com coração murcho e olhos marejados. Mal consegui olhar para a moça que nos descobriu. Conversávamos, antes dela chegar, sobre tudo o que eu sei que ela nunca poderá saber. Confessávamos nossos maiores medos, tais que ele, ele que é meu amor-confidente, nunca revelará para essa outra. A cena por um momento parou e nos tornamos um quadro de três pessoas desencontradas, com olhos procuradores, profundos, querendo um par. E ainda que eu seja seu porto-seguro, é ela quem chega para ficar e passar a noite. Eu não pude ganhar nada, fui o resta-um. Ali no meio daquela culpa inconveniente, metade de mim se perdeu. Eu deixei esse pedaço meu para trás, na pressa de sair correndo até alcançar meu caminho torto, corrompido, atravessado.

Na rua os meus lábios eram atacados pelo vento frio e perdiam a maciez a cada segundo. Meus lábios que não teriam chance de encontrar os lábios dele novamente e não queriam encontrar outros alheios. Meu rosto ficava cada vez mais pálido, pensando nas bochechas coradas da menina que ficou na casa sorrindo. Eu queria, a cada segundo, e desejava, a cada milésimo, não ser mais ninguém, não existir, não ser vista e nem notada, não ter chances. O apelo do meu "não" ecoava, ressoava em vão, pois eu continuava vivendo e precisando buscar descanso sob meu teto.

Quando pensei que havia sumido, finalmente, ao adentrar com tamanha força nos meus pensamentos desesperadamente exaustos de imaginar a continuação do que deixei para trás, algo me surpreendeu. Era no meio de uma rua a minha localização. Eu era um ponto trôpego errando a direção dos passos, desastrada. Eu senti olhares pousando em mim, no meu corpo, no meu rosto meio molhado, na minha áurea magoada. Eles estavam me olhando. Cerca de sete ou oito pessoas sentadas no meio-fio de uma esquina. Todas elas não perdendo o foco sobre mim. Nem meu casaco cinza e minha calça escura puderam me fazer passar despercebida.

Eu fiquei exposta. Sem defesa.

O frio batia desde antes, até quando ele tentou me aquecer sem nem mesmo me tocar, mas a partir dali senti um vento gelado bem mais forte, fazendo partes minhas tremerem. Eles ainda me olhavam. Eu que era pura incompreensão e não sabia qual o meu lugar além daquele rumo. Eu que era somente um sentimento indeterminado. Eu que não tinha nada mais do que uma falta enorme de ser alguém e ter alguém para mostrar. Olhavam curiosos, talvez com pena.

Eu me esqueci de onde deveria parar, para onde deveria ir, e apenas continuei andando. Um pouco mais rápido dessa vez. E, de tão exposta ao passar por todas aquelas pessoas, andei falando sozinha pelas outras ruas. Minha voz que havia sumido, começou a se expor sem meu controle. Fiquei fora de mim, em todos os sentidos da frase. As confusões estavam sendo colocadas ao meu redor e eu sem conseguir calar a boca. Resmungando sobre mim, sobre a vida. Não estava me aceitando daquele jeito. Reclamava sobre os extremos aos quais costumo chegar, e também lamentava sobre ele, por ser justo a causa da minha loucura. Logo ele que andava tão próximo de mim nos últimos dias e me fazia esquecer dos meus acessos paranoicos.

Metade de mim, a que havia ficado por lá, sabia que só um resto de vinho não seria o suficiente para nós, pois logo que a garrafa ficasse vazia, teríamos que nos deixar. Enquanto havia bebida, havia motivo para pedir mais uns minutos ao acaso para estarmos juntos. A outra metade, que era aquela andando sem destino pelas ruas mais mortas daquelas horas tardias, sabia desde o início que o dia não acabaria tão cedo e tão bom, pois um dia após o outro nunca é igual. Em um dia a gente é feliz pelo resto da vida, em outro a gente nem quer viver. Minha voz, em completo descontrole, dizia: eu queria mais um pouquinho daquele nosso dia bom para aguentar passar por todos esses dias ruins que virão.

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