Eu saí andando daquela vez pra bem longe,
pois não esperava por nada melhor. Fui embora de sua vida com minha
autenticidade, quase arrogante, de concordar em discordar do jeito errado dela.
Eu não iria viver seus erros, tampouco suportaria, então fui pra longe, tão
distante, para o silêncio da gente. Não nos falamos mais desde aquela vez em
que ela me fez cansar de tudo.
Dia após dia, foi tão clichê. Eu estava ali
sempre mudo. Não era fácil não dizer nada, mas não era difícil fingir que era.
Ela ficava ali também parada como quem esperava pela vida, por um milagre do
céu. Parecia patética com aqueles olhos escuros sonolentos para todos ao seu
redor, não opinando sobre coisa nenhuma, só ouvindo. Tinha o costume de
demonstrar que não queria estar onde estava, mesmo que nem soubesse para onde
realmente queria ir.
Eu me transformava por dentro. Não por ela,
mas por tudo. Cara, os dias estavam cansativos, estavam dolorosos. "Muita
coisa na cabeça", você sabe como isso acontece sem permissão de corpo e
alma nenhuma. Eu penetrava na vida adulta me sentindo como uma criança e, no
último aniversário, eu quis ter cinco anos a menos. Em nenhum dia eu tinha
certeza de nada. Queria aprender tanto que comia os livros, mastigava os
filmes, triturava as músicas com os dentes, engolia as aulas, me alimentava de
cada ideia nova. Vez ou outra me lembrava dela, que por única qualidade tinha
uma bagagem cultural enorme - sem nunca ter saído para tão longe da cidade. Mas
toda vez que a via por acaso, parecia a mesma.
Ela ficava ali. Não avisou que mudaria, e eu
não aguardava por mudanças.
Houve uma noite. Como os dias existem por
horas e depois se tornam memórias distorcidas, aquela noite existiu. O que digo
agora é uma lembrança falha e nem faz tanto tempo, porém, a cada dia se
modifica. Talvez seja porque penso sempre naquele momento e vou mudando um
detalhe ou outro sem perceber. O que realmente importa é que eu estive lá. Ela
também. Estivemos por inteiro, pela primeira a vez a sós depois de tanto tempo.
Pela primeira vez porque nós dois queríamos estar no mesmo lugar.
Eu fui ao seu encontro porque ela chamou, e
fui sem esperar nada melhor. O dia já tinha sido ruim e a vida só desandava. Eu
sentei em um canto escorado à parede aguardando por uma revisita ao passado que
me fizesse desanimar mais ainda daquela semana derradeira.
Ela, sem mais nem menos - e isso já era uma
diferença tamanha porque sempre gostava de explicações, disse algumas coisas
sobre guerra e paz, sobre ódio e amor. Eu não entendia o porquê e nem me
contentava muito em saber. A mulher que falava naquela hora não era a menina
que eu escutava antes. Algumas respostas que eu desejava internamente saber
antes, apareceram no meio de seu discurso, e eu gostei de ouvi-las. Ela tinha
tanta certeza do que dizia que poderia transformar tudo aquilo em uma
literatura social - que eu certamente compraria. Me fez rir vez ou outra, pois
daquela vez seus argumentos tinham humor. De repente, eu estava compenetrado
naquilo, naquelas palavras todas. Eu estava querendo ouvir mais e mais. O que
ela dizia era tão bom para mim, tão bom para nós, tão bom para uma vida inteira
que eu ouvi pensando sobre tudo. Me confundiu e logo se explicou, não deixou
escapar pormenor nenhum. Ela deixou tudo tão simples que.
Cara.
Ela mudou tanto! Ela explodiu na minha
frente com suas certezas, com sua determinação, com gestos saindo de si a me
invadir por inteiro e provocando uma curiosidade enorme de saber como chegou
até ali. Lavou o rosto em uma pia feita de águas limpas nas minhas mãos e se
mostrou sem maquiagem, se mostrou outra.
Eu não estava preparado, mas quis aceitar o
mais depressa possível cada um dos pedidos de sossego entre nós, para que
fôssemos dois novamente e eu pudesse descobrir mais, me surpreender mais. Ela
queria nos redescobrir e já fazia isso por mim, já se entregava em pé
demonstrando sua transformação.
Eu nunca esqueci aquela noite, nem mesmo
por um segundo, nem mesmo pela falta dela por algumas horas. Porque nos
aproximamos - e essa palavra não se confunde tanto com "apaixonamos"
por acaso. Dia após dia, foi tão surreal.
Quanto mais ela aparentava uma mudança nova
para mim, mais eu me sentia o mesmo de antes. Eu era um Zé Ninguém perto
daquela Madame Revolucionária e, mesmo assim, nossas ideias iam de encontro e
poderíamos salvar nossos mundos. Eu era somente o de sempre perto de todas as
novidades que ela tinha para deixar escapar no meio de suas frases. Não queria
me surpreender com gritos, apenas me prendia a ela em seu colo no meio de
sussurros.
Ela, a nova ela, falava tanto e falava sem
parar, e eu gostava de ouvir aquela voz. De repente, eu percebi que sentia
saudade de ouvi-la, e antes nunca fomos muito de conversar. Eu senti a saudade
que uma vez, no meio de nosso ano conturbado, ela disse que eu sentiria e não
acreditei.
Ela voltou para mostrar quem sempre foi e
quem eu nunca quis ver que era. Uma garota incrível. Eu sentia tanta saudade
que, foi em um momento rápido, eu a beijei tão intenso como qualquer outro
beijo não havia sido até então. Nos encaixamos. Eu a beijei no meio de um
abraço e os espaços vazios dos nossos corpos foram se aquecendo. E poderia
pausar a cena para correr para a rua e pedir desculpas aos céus por ter perdido
tanto tempo. Mas, mesmo sem pausa, ela não quis ficar.
Meu Deus, ela mudou tanto! E, percebendo
isso, eu gostaria de mudar os dias, mudar o tempo, mudar meus olhos que antes
não sabiam enxergar aquela maravilhosidade toda. Os olhos patéticos agora eram
poéticos e eu quis escrever sobre ela. Eu quis pregá-la nesse meu quarto que
parece vazio demais sem seu corpo ao meu lado e isso é tudo, é isso que
escrevo. A cada palavra, ela muda mais um pouco, muda para não ser mais minha,
apenas porque a desperdicei. Ela não avisou e eu fui embora, e dessa vez corro
para trás, corro de costas, corro às cegas, corro na contramão para ver se
ainda consigo a alcançar.
Ela não avisou, porque não era sua
obrigação se adaptar para pertencer a mim, tampouco mudar qualquer acaso para
nos abrigar em um lugar só. Quando eu disse que iria, nem me pediu para ficar,
nem chorou, nem protestou. Me deixou livre porque estava aprendendo a ser livre
também. E de toda a liberdade que teve, fez essa coisa bonita que me mostrou,
como uma encenação real de seu roteiro tardio, e deu tanto contraste a minha
vida tão feia que agora digo, pensando alto demais, que preciso dela.
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