de repente, o dia chato
ganhou um tom bonito, e eu estava com as minhas pernas esticadas no colo dele,
questionando o gosto do vinho barato que compramos.
- dever ser o gosto de
cerveja que já estava na sua boca.
ele tem explicações
óbvias que sossegam meus questionamentos disparados. de repente, o frio nos
serviu de empurrão do destino para nos juntar um pouco mais, aquecendo-nos. lá
estávamos, parecendo duas pessoas que se pertencem com um conforto tamanho que
os outros ao redor não podem interromper. olhávamos nos olhos para falar sobre
o que há de mais simples.
eu não sei como tanta
gente chegou, formando uma roda de onze ou doze pessoas com seus copos e seus
cigarros e suas histórias e suas risadas. eu os conhecia, mas não queria ir
além para desvendar todos os seus mistérios como queria fazer com ele que
estava ali perto, ao meu lado. sei que soa clichê, mas nunca fomos mesmo de
escapar dos dramas e romances mais comuns da história. talvez até gostemos de
nos parecer com personagens de livros, tornando-nos assim uma reviravolta
literária: a realidade exposta da representação do real. porque a escrita
exagera a vida quando a imita e, estando juntos, somos essa prosa já exagerada
- ainda que nos falte vocabulário. somos personificações da imitação de outras
pessoas. lembro que o vinho era só para nós dois, e, a partir daquilo - daquele
acordo de beber uma coisa só nossa, partimos para a sensação de beber só de nós
também, adentrando um mundinho particular. eu estava bebendo da sua presença
para não me sentir mais sozinha e ele estava bebendo do meu jeito de encará-lo
como quem sente um amor gritante, assim, conseguia prosseguir com aquela noite
que, antes mais cedo, ele nem queria viver.
eu deitei minha cabeça
em seu ombro para que a tontura da embriaguez passasse, para que um afago
viesse, para que tomar um pouco de si para mim ficasse mais fácil através dos
pequenos toques e gestos. fiquei ali pensando em um futuro não tão distante
que, por mais inventado que fosse, no meio de algum otimismo certo meu, poderia
acontecer. não era minha hora de criar expectativa, mas eu criava como quem
cuida de um animal dócil, criava com cautela.
nós saímos de lá de
fininho, quase nas pontas dos pés. foi para escapar deles e somente assim poder
no encontrar como estávamos querendo: profundamente. escorados no muro baixo da
sua casa e de repente seu corpo contra o meu e de repente ambos os corpos
enlaçados e de repente os dois no sofá e de repente suspiros. queríamos nos
encontrar daquele jeito sem saber o porquê, mas lá estávamos. se foi cerveja,
se foi vinho, pra ele eu não sei, mas pra mim foi só ele, o único motivo para
estar ali.
eu ficaria até não
existir mais aquele dia, até ser outro e outro e outro. eu permaneceria, assim
tão fácil, sem pedido, apenas ficando mais e mais. feita de repetições do que
foi bom. mas ele não sabe ter ninguém pra sempre quando o tempo começa a
passar rápido demais. comparar os dias e ver todos iguais machuca-o um tanto,
e ele não me deixaria transformar nós dois em rotina.
fim de embriaguez,
ressaca e pé na estrada. minha hora de voltar pra casa. eu viverei mais dias chatos outra vez.
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