Você aposta em cavalos,
Bukowski, eu só sei apostar no amor. Sei que também já apostou nessa coisa que
é tudo aquilo que dissemos que não era, porque reconheço seu sentimentalismo de
longe, nas entrelinhas mais discretas. A diferença entre você e eu, é que você
sabe fingir bem que não sente nada por ninguém, só sente muito pela própria
vida, como se um suicídio fosse um favor que você não vai cumprir tão facilmente.
Eu não sei fingir nada e me deixo exposta em um sol de meio-dia lembrando das
coisas suas que já li. Eu te vejo com suas incontáveis mulheres, adorando todas
elas com seus defeitos mais gritantes - porque você gosta dos erros, das falhas
-, e de minha mulher eu só chamo a
cerveja, o único cão dos diabos que me dá bons efeitos. Essa cerveja aí é tudo
o que você quer pra agora? Não vai pedir um vinho ou um uísque? Eu pergunto
isso porque, na verdade, gostaria de estar perguntando o que te abala e te faz
chorar deitado em posição fetal no meio de uma crise, mas soaria um porre.
Perguntaria isso apenas porque estou aqui comparando sentimentos nossos,
procurando qualquer deslize que sai de uma palavra sua e corre até uma minha
para que possamos nos parecer em algo, porque meu desespero grita. Meu
desespero de entender como é ser um escritor como você e para entender como é
ter mais de cinquenta anos e não morrer de decepção com a própria escrita -
porque acreditar que ela é boa é difícil demais. Eu me pergunto, e queria ter
uma coragem tamanha de perguntar pra você, admitindo até que não reconheço em
mim forças para isso, como os grandes títulos geniais aconteceram.
Francamente,"Essa
loucura roubada que não desejo a ninguém a não ser a mim mesmo amém", como
isso aconteceu? Como os pedaços de um caderno manchado de vinho surgiram? Como
você colocou todas aquelas salas de estar que sempre davam em cozinhas com
bebidas no Hollywood? Como uma crise existencial vai de um pássaro azul a uma
reflexão sobre merda? Eu não saberia percorrer tanto caminho dentro de uma
literatura assim nem se escrevesse em todo muro que eu encontrasse daqui pra
frente. Eu não saberia enganar tanta gente do século XXI com frases
pseudo-otimistas, soando com uma pessoa que até faz auto-ajuda, para em uma
leitura mais aprofundada revelar que as lamentações de um velho safado nunca fizeram
sorrir, a não ser através daquela risada ácida sobre as piores desgraças da
vida.
Nós podemos conversar sobre as mulheres e
suas formas, e seus corpos, e seus cheiros, e seus jeitos. Nós podemos
conversar sobre as bebidas e seus gostos, e seus efeitos, e suas ressacas. Mas
a escrita sempre vai ser pertinente quando se trata de você. Seu silêncio
eterno vai dizer "Don't try" e eu só queria saber como é não tentar
em uma coisa tão imprevisível, como é não ir em frente até quando não se sabe
se pode sair um texto muito bom ou muito ruim. Que porra você faz na frente da
máquina de escrever? Vira garrafas e escreve tudo o que quer? Fica encarando
aquelas letras, aquele papel, aquela ideia dentro da mente? Eu não sei como, de
todos os resultados possíveis, você conseguiu os melhores, sendo apenas um
fodido na vida. Digo, você não escreveu sobre dragões e deuses mitológicos,
tampouco sobre fantasmas que não fossem a própria consciência e a própria
razão. Você foi o melhor fodido nessa vida toda, certo?
Sei que não ficará por aqui sanando dúvidas,
então, antes que se levante para ir embora e eu precise começar uma briga com
alguém do bar para te fazer ficar mais um pouco, eu só vou dizer uma coisa
qualquer sobre inspiração. Sobre o quanto as duas primeiras páginas de Pulp,
primeiro livro seu que li, mudaram toda a minha visão sobre tudo. É irônico
como logo o seu último livro foi o meu primeiro - e a essa altura já não sei
mais em que época planejo essa conversa toda -, e é um tanto engraçado como
desde então eu nunca mais quis seguir padrão nenhum de escrita. E é curioso
como uma garota de 15 anos lia Charles Bukowski escondida enquanto matava aula
na escola e, sabendo pouco sobre a dor e lendo muito de um rabugento, quis
fazer algo parecido na vida. Anos mais tarde, Buk, eu descobri o quanto o
álcool salva a escrita, na hora ou depois, no porre ou na ressaca, na tontura
ou na ânsia, no fogo ou no banho gelado. Salva sempre. E a escrita salva a
vida, isso eu leio em cada linha sua. Nosso brinde pode ser contínuo: um copo
de cerveja gelada virado de uma vez em todas as vezes que bebermos e pensarmos
em algo para escrever.
Flavia
Andrade
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