janeiro 06, 2019

Quando os primeiros minutos do novo ano me alcançaram, não encarei o céu.
Havia nele estouros brilhantes, mas dentro de mim nada fez barulho. Como era possível encerrar trezentos e sessenta e cinco dias num instante, se eu estava com o hábito de vivenciar instantes como décadas, pela dureza dos fatos? Também não encarei os rostos que se aproximaram com braços largos, dois a dois, para me envolverem em desejos e promessas de dias melhores. Minha boca, como o resto de mim, não tinha som. Olhei apenas os arredores, sorrateira, como quem não quer olhar, para perceber o tumulto de corpos esperançosos e notar que, dentre eles, eu destoava. Assim, como quem não imagina nadinha no mundo melhor, uma descrente em evidência. A voz que inventei copiando frases dos outros para me passar por contente tinha certo tom de sádica, como se eu estivesse pronta para não mudar de ano, não recomeçar coisa nenhuma. Eu poderia, ali, partir com a roupa do corpo para viver em 2018 por mais dois ou três anos antes de tomar coragem para acontecimentos piores — porque novos. Eu poderia me fechar num cubículo invisível em que apenas coubesse eu mesma e impedir passagens pela próxima década para não lidar com o desconhecido. O conhecido já era um fardo pesado demais. E eu tinha em mim essa autopiedade de que, se eu lutasse bastante ali, naquela hora, não receberia mais do que já me era suficiente. O que eu não podia impedir eram as pessoas que eu precisava proteger, desse mundo louco que são as nossas vidas, de se mudarem para outro janeiro e tentarem outra vez. Então, quando os minutos do novo ano me alcançaram e eu não encarei o céu, busquei quem tivesse forças para me levar consigo. Sozinha, eu teria ficado para trás.

agosto 06, 2017

Poetas que estragam palavras não são poetas

Scatola di Colore, Ettore Spalletti, 1991.

    Ele era poeta. Dessas poesias frouxas que não se arriscam. Achava que pinta de autor era adquirida ao falar sobre as rimas que fez na última noite. Falava que preferia a solidão, sabendo que na certa morreria se ela se fizesse presente com obrigatoriedade. Confessou-me uma vez que amava a palavra "caos". Ele, aquele porre, porre de quem bebe um copo de cerveja e boceja. Meus ouvidos doeram, frágeis para tanta baboseira. Recebi um exemplar de conjunto de poemas seus. Caos em cada página. Nunca mais usei a palavra em meus textos. Ele a estragou e compreendi. Poetas que estragam palavras não são poetas. Seus poemas têm cheiro azedo, de leite esquecido fora da geladeira que ninguém quis tomar. Não me descem.

Flavia Andrade

julho 27, 2017


    Com o cobertor puxado até abaixo dos olhos, os olhos no teto, o teto com aquelas estrelas falsas que vieram num pacote de seis reais, o valor tão baixo quanto sua vida, sua vida a forçando a se cobrir na cama até passar, o dia não tem fim. Não dorme, mas se sente em um acordar constante que a força a olhar mais uma vez pela janela e perceber o clima frio, o acúmulo de sacos pretos de lixo na lixeira, os poucos carros passando e a trilha sonora distante de filme entediante que dura mais que as horas de trabalho que teve para pagar o ingresso. Puxa mais um pouco o cobertor e some até o próximo ring, ring, ring do celular despertando.

    Olha, eu acho que não vou ficar muito tempo aqui, estou meio mal. O aviso sai da boca de batom vermelho da menina escorada no muro no canto da festa. A pergunta preocupada com sua última frase não vem: o que importa se está meio mal? Meio down, ela diria, se não fosse o desânimo de inserir palavra diferente desde a última vez que falou coisa parecida. E checa o celular três ou quatro vezes a cada música que sai do som ensurdecedor. Limpa as unhas com outras unhas se questionando por que aceitou vir a um lugar sem planejar sendo a pessoa que nunca está preparada para o imediato.

junho 24, 2017

[Eu] sobre você



Eu tropeço em cada canto, mas quando você dorme me concentro no seu rosto. Eu não encaro ninguém, mas sei repousar meu olhar no seu por mais de três segundos. Eu não tenho onde deixar meu corpo para um sossego, mas tenho mais: abraços seus. Eu não sou mais quem eu era, mas com você sou uma pessoa melhor. Eu costumava saber para onde ia e agora só me dou a condição de me perder - desde que você me dê as mãos. E se eu vou só ainda sei que tenho você.

Outra tarde

Minimalist kiss drawing. Original line art illustration. by siret

Olha mais um riso seu no meu portão e ainda não me ajeitei, não tô pronta pra sair. Perdoa meu chamado, não era desses de empolgar, era pra te fazer ficar aqui. Do seu trabalho para o meu sofá eu quero um cafuné, você do lado, a televisão e nós alheios. Perder o tempo é de graça e eu jurei: não te trago mais gasto. Já sou desgaste, quero dias a serem preenchidos e escolhi suas manias para guardar no pote pra viagem.
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