junho 30, 2015

Pro Criolo

    Os bares estão cheios de pessoas tão cheias que transbordam e se derramam em seus copos. Parte dessa gente misturada com álcool é receita de freguês. Os bares estão lotados de amores não correspondidos, daqueles que custam três meses de destilados e dois anos de qualquer bebida correspondente ao tamanho das coisas sentidas. Não é segredo que todo bar tem um livro grande com uma história longa dentro de algum cliente silenciado pelos tumultos lá de fora, mas é enigma encontrar um alguém sequer sozinho e sóbrio que pare pra ouvir. Quem passa por perto diz que os cheiros incomodam, mas não reconhece o peso de cada tragada e a profundidade de cada gole, não vê que naquele cheiro todo tem odor de gente que já partiu, gente que só quis ficar um pouco e gente que ainda nem apareceu. Tem gole que limpa e suja, ao mesmo tempo, aquele gole certeiro que mata a angústia, mas atinge imediatamente a vontade de ligar pra quem não gostaria de atender. Os bares estão cheios de pessoas tão cheias de coisas não ditas e entaladas, que só aquilo que queima a garganta consegue descer. Os bancos e cadeiras sustentam almas perdidas em corpos que só imaginaram aquele endereço quando a disritmia emocional bateu, e sustentam com tamanho zelo que os pés não sabem se comportar depois, ziguezagueiam entrelaçando as pernas. Os bares não têm gente de alma vazia, Criolo, os vazios estão fazendo discurso em rede nacional. 

Flávia Andrade

A vida não passa pra nós

    Porque eu sei que quando você olha pra cá não vê nada ao redor, só minhas maneiras erradas de fingir que não te vejo. E sei que, quando volta o olhar para as coisas alheias do seu dia, ainda pensa na menina que mudou em números e continua a mesma em palavras. Não perde nunca sua mania de não cumprir com os desejos de uma vida certinha e corre sempre na contramão dos bons planos, e com esse jeito todo errado acaba me encontrando outra vez, de novo e de novo. Nós sempre tropeçamos nas mesmas pedras, pois ainda somos duas crianças perdidas nesses corpos crescidos. E terminamos na rua sem saída que atrapalha nossas corridas contra o tempo para fazer as coisas que não devem ser feitas, só por oposição aos deveres deixados de lado. Porque eu sei que quando eu olho pra sua direção não é por acaso, é pura sorte que surge depois de tantos dias te procurando. Agora que acabamos aqui mais uma vez, podemos sentar e conversar sobre todas aquelas coisas que fizemos de ponta-cabeça quando se era pra prestar atenção, destilamos os arrependimentos, sacudimos as mãos e vamos embora mais leves. Como a gente sempre faz. Como a gente pensa que a vida é. Porque eu sei que, quando olhamos um pro outro, ouvimos as músicas que ninguém mais ouve, assistimos aos filmes que não passam em nenhuma tevê e pensamos aquilo tudo que não pode ser dito. De longe, se olhando tanto assim, a gente consegue continuar não-seguindo em frente, indo pra todos os lados e voltando ao ponto de partida pra se recompor.

Flávia Andrade

até domingo pra sempre

    nem peço promessa, a gente só marca um dia pra ser feliz e o estende até onde der. leva como o vento leva seus cabelos cacheados pro meio do rosto e te cega e te bagunça. leva desse jeito desajeitado pra não se confundir com os caminhos certos que querem nos rumar por ruas diferentes. a gente leva assim que o acaso dá um jeito de coincidir com a data marcada. planeja em silêncio pra ninguém saber e vai, nas pontas dos pés, como quem nem pensa em ficar tanto tempo. promessa é coisa muito séria pra nossa vida simples, é só deixar pra domingo.

flávia andrade

junho 29, 2015

vários nadas

o corpo balança pra frente e pra trás, há uma dor nos ombros, nas costas, na perna esquerda, na nuca, na mão esquerda, na parte do nariz onde os óculos se apoiam. há um incômodo no corpo inteiro de fora a fora de dentro a dentro de todo lado em toda extensão. há um imediatismo lerdo inquieto não resolvido na mente. há um embate entre corpo alma espírito mente e tudo o mais que possa existir nessas redondezas inconscientes. há pouco espaço na casa vazia. há pouco espaço no estômago vazio. há poucas palavras pra tanta coisa pra dizer. há pouquíssimo tempo pra tanto nada. não há nada para se escrever, logo pra esse alguém tão tumultuado, tão errado, tão acumulador de histórias.

flávia andrade

mais algumas horas

um dia e meio para o fim do mês e mais um texto sem direção, como quem se perde no meio de uma plantação enorme de beira de estrada e não se encontra nunca mais, como quem foge do próprio objetivo por um medo gritante das consequências. por quem é a própria consequência da vida. por não ter verdades que suportem esse mundo de mentira que despenca, por não ter qualquer outra frase boa pra se encaixar em texto ruim. uma dispersão no meio de cada pensamento, sem foco algum como câmera velha de um péssimo fotógrafo. como a fotografia mal escrita de observador cego. sendo tanta comparação que não se encontra mais no que realmente é. sendo tanta coisa que nem foi e nem será, só esse presente quase inexistente que poucos veem. sendo nada mais e nada menos do que uma projeção inusitada na parede cheia de rabiscos num quarto adolescente, no meio de slides acadêmicos, entre todas as procrastinações. sendo só mais uma com um cabelo legal, uma cara amassada e guardando o cigarro no lugar mais escondido. sendo só mais uma cachaceira sóbria com saudade de um bom pior destilado. um dia e meio para o fim do mês e nada aconteceu, nada andou.

flávia andrade 

junho 27, 2015

fim

    não sou uma suicida. segundo após segundo, desde que acordo, penso e faço qualquer coisa (dentro de meus surtos e receios e impedimentos) que me deixem viva até alcançar a próxima noite de sono. não estou tentando morrer. não estou ávida para essa vida. não estou tentando me atravessar com nada e tampouco tentando atravessar alguma coisa. respiro. e o tanto que respiro é o tanto que me mantenho aqui. exige uma força tamanha. e as relações, elas me enfraquecem. cada relação é um peso enorme fincado no meu ombro que vai sendo arrastado comigo e não posso colocar numa sacola pra tentar diminuir a dor. e as vezes elas se afundam com tanta energia no meu ombro e rasgam e descem costas abaixo e me abrem e o sangue esguicha flávia afora. mas eu não as arranco de mim, deixo-as ficar. ficam aqui rasgando e rasgando e abrindo meu corpo por inteiro. eu deixo que as relações me tomem, peguem tudo o que é arrancado de mim, eu até entrego as vezes, embrulho pra presente, dou junto de declarações. e se alcanço a próxima noite de sono na qual eu possa dormir, talvez sonhar, e respirar levemente mais uma vez, eu sei que venci, eu sinto no banho noturno meu corpo sendo restaurado e não posso ver nada do que aguentei se acabar. 
    o que eu estava dizendo até aquele ponto é que o fim é castigo. só confio em luas porque sei que sempre dão espaço aos sóis. além de sol e lua, rotação e translação, planetas que agem sem nós, além de nós, as coisas não acabam. mas a gente sempre deixa que acabe. e eu aguento tanto, mas tanto. eu suporto as relações e eu me entrego, eu me esvazio para alimentá-las e antes que me acabe por completo, tento me recompor. digo todas aquelas coisas sobre amor e felicidade e etc e tal porque tento, do fundo da minha pele mais desgastada por pesos alheios, dar essas coisas etc e tal a quem me encontra e tenta caminhar ao meu lado durante esses dias que segundo após segundo me corroem. eu morro para estar bem e não tentar me matar. é muito doloroso ter que acordar, abrir as janelas, a porta, fazer o café, sair na rua, encontrar outras pessoas, é muito doloroso dizer bom dia, é muito doloroso dizer que estou bem. mas eu me mantenho. e eu não consigo aceitar que alguém vá embora.
    se no meio do dia que outra vez iniciei ocorre um fim, um fim que não seja o baile da lua e o descanso do sol, eu me perco. um buraco sem fundo se abre no meio do meu caminho de modo que não posso continuar a dar meu passos sem cair e despencar e me machucar tanto que recomposição nenhuma me deixe refeita por inteiro para outras jornadas. eu não sei pôr fim em nada e não sei aceitar nenhum fim. aqueles pesos fincados tão jeitosamente quando repentinamente ficam leves e inexistentes, deixam crateras que meu corpo não completa nem cobre. nem os que só ficam por três dias, tampouco os que permanecem por três anos, nem os que cresceram comigo, nem os que me perfuraram ainda ontem. quando são retirados e decretam fim, meus pensamentos ficam aflitos e nervosos e turbulentos e mandam todas as energias pro espaço que é deixado. e o trânsito e as quinas e o fogão e tudo em que é possível tropeçar, cair, causar uma dor dos infernos, tudo aparece de maneira errada. eu fico tão perdida e tento dizer pra mim, em prece, que não sou uma suicida ou desistente e não dou fim ao que sou, mas o sangue que escorre sem ter por quem derramar também não me dá sentidos que digam: avante. então eu paro, inerte, e viro um ponto final.

flávia andrade



    também não sei dar fim aos textos, já estiveram em mim e foram mais eu que sou durantes esses dias que se passam segundo após segundo. os começos me embarcam sem direção alguma com olhos vendados e eu venho com todas essas coisas a dizer e não posso parar. lua alguma e sol algum sabe silenciar esse vocabulário torto enorme e com esquisitices que tenta sempre dizer o que nada mais sabe expressar em lugar nenhum. e não posso terminá-los. e ninguém pode terminar por mim. e não posso ser deixada a ponto de escrever tanta coisa com fim e sobre fim. e todo alguém pode tentar me trazer todas essas coisas acabadas de volta para remendos.

junho 24, 2015

Cigarros

    Não pego leve com meus vícios, não os perdoo, e tampouco perdoo as paixões baratas por quem não se importa. Aceito essa solidão perpétua de uma vida breve. Coração, pulmão, rim, fígados, dentes; para mim, são só coisas que vão amarelar e apodrecer como papéis e frutos. Se nessa jornada a dor bater como um soco de punho fechado, uma caixa de remédios poderá fazer passar. A partir de agora, toda dor é física, o que era emocional já foi afogado, não importa em que copo ou rio. Não há prazo para o fim, há promessa. É um silêncio imutável no meio de todos os pensamentos inquietantes sobre toda essa merda. Não há certeza, chamo de acomodação, e isso, não me leva a canto algum. Quando você se acomoda, pode morrer num beco, pode ter uma convulsão ou simplesmente ter o azar de ficar sóbrio o bastante para dar um tiro na cabeça. Não há fraqueza; se ainda me sustento, ainda insisto. No fim, se o tiro for disparado, será somente uma saída triunfal em comparação às hipóteses. Caixão, cemitério, flores; são só coisas que ninguém me dará e não vou pedir. Há um acordo: o mundo continua sendo uma merda, eu continuo exagerando, e isso, meus caros, me levará a algum lugar, não importa qual.

junho 21, 2015

por você

    fecha os olhos por alguns minutos enquanto eu corro pra fazer mil doideiras de gente que gosta tanto que até perde as estribeiras das contradições. se você acha que ando fazendo muito pouco por nós, espera só até eu ir buscar seu café predileto lá na fábrica de jundiaí, comprar todas aquelas camisetas de todas aquelas bandas de todas aquelas cores pra encher seu guarda-roupa, pesquisar oitenta mil receitas procurando o nome daquele doce que você viu uma vez por aí e ficou com tanta vontade que nenhum outro doce parece tão bom e eu vou descobrir e vou fazer pelos próximos trezentos e sessenta e cinco dias. mas fica de olhos fechados porque não pode me ver em total desespero nesse lado do cabo de guerra puxando tudo sozinha com toda força que você espera que eu tenha só pra nos salvar. e só abre quando eu disser que já pode, pra você encontrar em mim toda a arrumação da nossa vida guardada na menina pela qual se apaixonou à oitava vista naquele lugar que não lembra bem. eu vou consertar tudo enquanto você deita fechando os olhos tão profundamente que vê uns brilhos estranhos e até sente uma dor de cabeça. mas passa logo, eu prometo, trago um remédio pra dor também. deixa que eu resolvo a gente, e se precisar, vou ao cartório, arranjo testemunhas na rua, podemos casar. se ainda não tiver tanto motivo, a gente fura a fila da adoção, pega quinze crianças, muda para uma casa maior, puxa amor do mais profundo do nosso ser e dá pra todas elas. fecha os olhos pra dormir bem enquanto termino de assinar e guardar a papelada, separo por pastas, enfrento a burocracia e venho pra te dar beijo de boa noite. eu aguento tudo isso, você só tem que prometer que fica aqui, como sempre fica, com os olhos fechadinhos e um sorriso pra me receber de volta. eu ajeito a gente, a família e o resto do mundo pra gente se salvar nesse tumulto todo de gêmeos e escorpião, nessa bagunça enorme de tanto-faz e exagero, nesse universo desnorteado que a gente criou quando se conheceu. prometo que fica tudo bem.

flavia andrade

dó ré mim go


     é domingo, meu bem. você sabe que a gente pode rir até o fim do dia. no domingo ninguém chora, ninguém pensa nas besteiras que fez. vai ter carnaval em junho até mais tarde, vão atravessar as ruas sambando. é domingo, ninguém sabe se é final ou início, é só domingo. nem precisa ler poesia, nem precisa assistir filme que termina sem sentido, pode até ouvir chico e caê. mas o necessário é só o nada, é só deitar no chão. você pode ter dezessete anos de novo, pode adotar quinhentos cachorros, pode recortar revistas, pode inventar um jogo ou só ficar na frente da tevê. hoje as coisas acontecem como se fossem música, música de domingo.

flávia andrade

junho 20, 2015

A gente invertido


     Olha você, do outro lado da rua, prestes a atropelar meu auto controle. Quase indo para a outra direção para me forçar a correr atrás às cegas entre pessoas que não nos conhecem. Desviando de um por um como se fossem trezentos e tentando te alcançar como se há alguns meses não tivéssemos posto fim  a nós. Aquilo que chamávamos de nós. Olha pra mim, nessa calçada, a mesma. Digo, a calçada, eu, a situação, tudo a mesma. Você mudou tanto e, olha pra mim. O auto controle termina em cinco, quatro, três, e você dobra a esquina. O auto controle retorna, está tudo bem. Não vou fugir de mim para te alcançar outra vez. Só comigo me acertei, enquanto você só me fez chorar em frente a televisão com novelas das nove. Olha pra você, com toda essa velocidade se afastando, ignorando semáforos, não tendo lembranças das ruas que deixou para trás. E eu perdida em cada pedra no caminho, olha pra mim. Peço sem motivo, para ver se sente alguma coisa mínima minúscula intangível imperceptível inexistente ainda. Olha pra gente, quase outro mundo ou quase o mesmo mundo invertido. Você se afasta, e eu ando em círculos. 

Flávia Andrade

junho 19, 2015

Os opostos se distraem



    Se você me vê andando torta, pode entender que eu gosto das coisas erradas. Gosto de parafusos a menos, persistências em erros, tombos e quedas bêbadas. Se você me vê me aproximando, pode saber que eu vi em você todas essas coisas que ninguém mais gosta, que você parece tão oposto que eu tento me juntar.

Flávia Andrade

Sou um pouco de você, pai

    Sou por completo uma saudade inteira nessa cidade pequena. Sou quem anda com sorriso frouxo, de lado, lembrando de quem não anda mais por rua alguma. Sou uma filha que sente falta do pai, uma menina que quase não soube crescer sem herói. Sou quem sabe algumas músicas de cor em uma voz masculina que recorda a infância. Os dias de junho de hoje não são os mesmos dias de junho de dois mil e nove, de lá pra trás os dias costumavam ser mais curtos. Os meus passos não são contados,tampouco o tempo que já passou, mas eu sei o tanto que ando e quanta coisa aconteceu desde então. Sou quem comemora em silêncio e brinda ao céu, para orgulhar quem não teve chance de ficar e ver de perto. Sou quem se esforça para ser melhor por quem já foi tão bom. Sou tanta saudade que já sei como trazer comigo, e já nem choro mais. Sou uma parte dele que ficou, que precisa viver um pouco como ele quis.


Flávia Andrade

junho 18, 2015

Trip


    Os meus planos são de sair de casa, acender meus cigarros, apagá-los na grama. Fumar para o céu. Os meus planos são de tocar aquelas músicas, ouvir o que elas têm a me dizer. Roubaram  meus planos melhores, sobraram esses que agem como cinzas no ar, por efeito de um vento que sopra. Para quando anoitecer, só planejei bater na porta de alguém, dizer que esse alguém é único para mim, permanecer só até às cinco da manhã. Enganar quem não me engana. Eu lembro que ainda tenho coisas a fazer no lugar que deixo para trás, mas há uma viagem longa que não pode esperar por mim. Eu preciso ir embora e meus planos são de sair de casa. Não volto amanhã, não volto segunda-feira, não volto pra ninguém. Quero estar distante, dizendo que não sei de nada, dependendo das emoções que me guiam para qualquer lugar bom de sofrer em silêncio. Eu posso mostrar cada ferida, cada coisa que dói em mim, mas ninguém pode levar embora e deixar restos. Não há quem guarde tempestade em potes, não há quem guarde minha dor em passados. 

Flávia Andrade

junho 17, 2015

Não somos nós



    Eu deixo você se aproximar em silêncio e me deixo silenciar também. Em cima dos simbolismos e subentendidos, a gente se deita. Braços, pernas e bocas bêbadas, hálito de álcool e sede um do outro. Não fazemos amor. Fodemos. Nus. Sem roupas, sem preocupações, sem nada além da pele e da carne e dos corpos que se movem. Ainda é dia, mas o quarto está escuro. A cama é para um, e assim ficamos. Suor, gemido e grito, não há disfarce. Eu deixo você ir embora depois e deixo a chama do isqueiro acender um cigarro. Volte sempre. 

Flávia Andrade

Outros e outros e outros


    Quem é você nesse outro dia? O mesmo de ontem, um plano de amanhã? Eu não posso me arriscar em quem dura tão pouco tempo, nem entregar tudo o que tenho a quem muda a vida inteira em menos de oito horas de sono. Ainda é aquele que estava com saudades ou é quem vai me deixar com um aperto no peito dessa vez? Já passou muito tempo desde que prometeu coisas para um futuro distante, já foi o tempo de esquecer? Eu não trarei esses assuntos para a mesa do almoço, eu não estragarei sua boa conversa com esses amigos que nunca conheci. Estarei aqui envolta de questões, esperando que, ao menos, você apareça. Apenas não mude no meio do caminho, aproxime-se como te conheço e depois pode decidir quem será. Não me deixe confiar outra vez em uma pessoa que sequer existe. Me proteja, ao menos uma vez, de você mesmo.

Flávia Andrade

junho 16, 2015

Perdoa os textos com esse outro texto sobre você


    Perdoa o tanto de coisas que escrevo pra você por ano. Elas se misturam entre cartas e diários e desabafos e crônicas e contos e trechos e textos e muito de mim que ainda tem partes de você. Eu faço as contas e penso em parar, mas você sempre retorna com um jeito que me incomoda até que eu escreva. Você está sempre presente nas minhas frases, é um personagem ativo e desastroso, conflituoso, cheio de desconstruções e mudanças. Perdoa por escrever tanto, é minha escapatória quando não posso fugir para a sua casa, quando não posso me sentar ao seu lado e esvaziar a mente. Eu esvazio aqui, onde fiquei. Às vezes é só descontrole meu, mas por muitas vezes é vontade de que algo daqui, esses gritos de socorros e esses lamentos e as lembranças boas e as ruins e os choros silenciosos e tudo o mais, te alcance pra você vir me salvar, pra você voltar. Perdoa essa inocência toda que ainda persiste nos meus textos clichês, essa esperança toda que só aparece quando eu me calo e deixo transbordar no papel. Esse tanto de coisas é o que me resta de você. A saudade bate sempre, então dou um jeito de te encontrar outra vez.
Flávia Andrade

O que fica


    Não recordo datas, se foi fevereiro ou março, se em agosto já tinha terminado, se começou em setembro ou outubro. Não sei se você me fez chorar numa segunda-feira ou em um sábado, se eu sofri até domingo ou se parei na sexta. Tudo parece coincidir com o dia vinte e seis, mas talvez dia três você tenha dito alguma coisa importante. Se era de manhã ou a noite, se me pegou desprevenida em alguma tarde, não posso mais lembrar. Nem faz tanto tempo, mas o esforço para esquecer foi grande. E não importa, nada disso mudaria. Eu poderia tentar lembrar e encontrar sentidos, poderia juntar os acontecimentos do ano, o clima e as tragédias próximas para justificar os dias ruins. Mas eu sei que no fim a gente só pensou na gente, só sentiu o que poderia sentir um pelo o outro. O que estava ao redor era inexistente. As datas estão distantes, os dias só foram dias. Eu fico aqui sem noção de tempo, sem consciência de estado emocional, sem saber para onde vou, eu fico aqui e ainda sinto muito, sinto tudo. O tempo passa, o amor permanece. Ele se desconstrói, vira outros sentimentos, mas ainda lembro bem do quanto amei.

Flávia Andrade

O que digo nos sonhos



    Não some da altura dos meus olhos que eu caio no precipício. De manhãzinha não se mova, não se levante da cama, não ligue o motor do carro, espere eu acordar. Eu prometo que faço um café e não ligo a tevê no telejornal. As paredes estão geladas pelo frio, a sensação térmica pode me tomar por inteiro se você for. Me aninha num abraço e não solta. Eu prometo que faço te cafuné e não te faço levantar antes das dez. 

Flávia Andrade

A Ultima Explicação

 

   Quando eu dizia "eu não sei", eu sabia. Eu tinha todas as respostas boas que não escapavam com seus olhares ruins. Não havia carinho o bastante para acomodar o que estava para ser dito. Eu ficava muda, pensando em fugir, porque ali não estava me fazendo bem nenhum. Mas era difícil aceitar que logo você, que tanto me prometeu fazer bem, me cuidar, logo você que chegou cheio de sorrisos e esquentou minha mão com as suas enquanto comentava do tempo chuvoso, estava, naquelas horas sem fim, daquele jeito que me fazia conter lágrimas medrosas. Quando eu dizia que não tinha nada planejado para nós, eu estava apenas desistindo dos planos. E quando você me forçava a elaborar algo novo, eu jurava para mim que conseguiria sair antes que a pressão atingisse o limite. E quando eu te via agindo com todo aquele ar de superioridade e incompreensão, eu me arrependia de ser eu mesma, de ter chegado até ali. Quando eu parei de dizer nada, sinto muito, eu cansei. Eu não mentiria mais, e eu não iria a lugar nenhum ao seu lado. Eu parei de acreditar.

Flávia Andrade

junho 15, 2015

O Lugar Alto da Cidade

noveia

    Você ainda se lembra do endereço daquele lugar alto da cidade para onde ia sentir saudade de outro alguém? E me ligava para dizer coisas que só um velho com coração partido num asilo poderia dizer com tamanha naturalidade emocional. E dizia que não precisava ouvir meus conselhos, só precisava contar. E me deixava com um aperto no peito pelo resto da noite, da semana, do mês, querendo te encontrar para tentar resolver tudo com abraços. Você ainda fica sentado naquele gramado do parque planejando o futuro que costumava tentar mudar? E lamentava dos erros passados, me dizia que os velhos amigos não eram mais confiáveis e que o velho você estava morrendo, só precisava de uns últimos sufocos. Como se vinte e poucos anos fossem muitos. Ainda sai naquele sol de meio-dia depois de longas conversas matinais com alguém? Porque você só se deixava abalado até o meio-dia, depois a vida mudava, ia para o trabalho, para a faculdade, para o bar, nada te deixava triste, nada te perturbava. Porque você já tinha tido aquelas longas conversas comigo e tudo havia ficado para trás. Até dar meia-noite. Até a próxima manhã. Você ainda tem esses tempos regulados? Eu estou perguntando isso porque às vezes te vejo às 15, às 20, e não o entendo. E eu não sei bem os motivos. Mas se caso lembrar daquele endereço, peço que anote em algum lugar para mim, eu ando precisando ir para um lugar alto da cidade para sentir saudade de você.

Flávia Andrade

Vulnerável


    Eu tenho chances de correr para te encontrar e dizer todas as coisas que não param de rodear minha mente aonde quer que eu vá. Também posso continuar caminhando inquieta até que a gente se esbarre em qualquer calçada e eu receba a chance de dizer todas as coisas que não param de rodear minha mente aonde quer que eu vá. Posso tanto te procurar quanto esperar que me encontre, posso confiar no destino ou nos meus próprios pés. Eu somente não sei se posso ter tamanha coragem, se posso ter voz. Eu somente não sei o que vem depois. Se eu correr, posso perder todo meu ar. Se eu esbarrar, posso me machucar demais. Se eu confiar, posso acabar um pouco pior do que a última decepção me deixou. No meio de todas essas coisas que não param e etc e tal, estão suas reações. Não dependo de mim, pois se fosse, eu já estaria distante o bastante, com tudo resolvido. Dependo de você, de como foi seu dia, sua semana, do quanto sua cabeça está cheia, do quanto sua paciência anda durando, das suas cargas emocionais, físicas, dos seus últimos diálogos e do resto da sua vida, dependo de todos os caminhos que irão anteceder a parada na minha frente e toda a visão que seus olhos alcançarão enquanto meus lábios vão se mover pouco a pouco tentando dizer o que preciso. Se nada de você condizer com o que sinto, eu posso te perder completamente em poucos segundos, eu posso me perder sem prazo de volta, nós podemos acabar cometendo os maiores erros de nossas vidas. E tudo o que me rodeia é só sobre acertar dessa vez.

    Vulnerável. Sozinha. Depois de tanto tempo, é como estou.

Flávia Andrade

junho 13, 2015

Cigarros


    Não pego leve com meus vícios, não os perdoo, e tampouco perdoo as paixões baratas por quem não se importa. Aceito essa solidão perpétua de uma vida breve. Coração, pulmão, rim, fígados, dentes; para mim, são só coisas que vão amarelar e apodrecer como papéis e frutos. Se nessa jornada a dor bater como um soco de punho fechado, uma caixa de remédios poderá fazer passar. A partir de agora, toda dor é física, o que era emocional já foi afogado, não importa em que copo ou rio. Não há prazo para o fim, há promessa. É um silêncio imutável no meio de todos os pensamentos inquietantes sobre toda essa merda. Não há certeza, chamo de acomodação, e isso, não me leva a canto algum. Quando você se acomoda, pode morrer num beco, pode ter uma convulsão ou simplesmente ter o azar de ficar sóbrio o bastante para dar um tiro na cabeça. Não há fraqueza; se ainda me sustento, ainda insisto. No fim, se o tiro for disparado, será somente uma saída triunfal em comparação as hipóteses. Caixão, cemitério, flores; são só coisas que ninguém me dará e não vou pedir. Há um acordo: o mundo continua sendo uma merda, eu continuo exagerando, e isso, meus caros, me levará a algum lugar, não importa qual.

Flávia Andrade

uma guria

 

   eu sou essa guria que você vê, quieta e quase inerte, não há como mudar. sou só mais um guria entre todas as outras dessa rua, desse bairro e do resto de um mundo inteiro que nem imagina. você pode continuar seu caminho sem pensar nas mágoas que me deixou, pode continuar amando com todo aquele amor que eu pedi e não tive resposta. afinal, sou só mais uma guria sem resposta sentada nesse banco me perguntando quem errou primeiro, quem errou tanto para falhar no teste todo? e ainda que você tente voltar e me ofereça todas as coisas já com fim e pouco esquecidas, sou essa guria com remendos, cabeça baixa, band-aids, cigarros, desconcentração, adormecida, confusa, neurótica, taquicardíaca, emocionalmente de mal a pior, que pensa em uma pessoa só. e essa pessoa só vê todas as outras gurias e não olha praquelali, quela guria na sua frente declarando um texto em voz alta, esse aqui. e ela vai ler até que você perceba de quem se trata, vai sair pra buscar um martelo e uma mordaça se no último ponto final você ainda estiver sorrindo ou talvez fique verde e encontre sua espaçonave de volta para o planeta a qual pertence, só assim explicaria como você nunca a notou. sou essa guria que diz coisas de criança e adulto numa frase só, que diz sim até a metade do caminho e a partir de então vai dizendo não até chegar, que só percebe que entrou numa montanha russa quando desce zonza e olha para cima. e toda metáfora vai condizer com tudo o que você já fez com ela, é porque de repente você se tornou todo o ar poluído que essa guria respira. eu sou esse pulmão perdido, esse coração arrebentado, esses pés cortados, esse rosto remendado, esse corpo dolorido, esses hematomas roxos esverdeados, esse vermelho todo na sua boca, esse brilho todo nos seus olhos, essa beleza toda que ela não cansa de ver. nem quando as mágoas tentam cegar, nem que você não se coloque na frente dela enxergando o que ela realmente é. e, por isso, ainda educadamente explica: eu sou essa guria, com todas essas loucuras que não passam despercebidas e ofusca todo o amor que tenta dividir. sou essa guria olhando para você, esperando que você diga que ainda é esse guri que eu costumava conhecer.

flávia andrade

junho 09, 2015

Sobrevivência



    Naquela casa o telefone tocava, eu não atendia. Tocava sem parar e a campainha também tocava e eu não me movia. Alguém pressionava-o-botão-sem-descanso e eu rangia os dentes. Me cobria mais, quase por inteiro e sufocada pelo cobertor. Não sei por quantos dias fiquei lá dentro. Talvez dois, talvez sete, podem ter sido vinte ou mais de um mês. Não entenda esses barulhos como alguém tentando se comunicar contigo, veja tudo como o mundo tentando te trazer de volta ao buraco sem fundo de desgraças. Em silêncio, quase morta, nada me acontece. Não adianta somente beber e fumar para morrer mais cedo. O que funciona é morrer de vez, morrer para o mundo lá fora. Aqui fora. Se trata de morrer para sobreviver. A gente morre, de amor ou tédio, e continua vivendo sem que ninguém sinta o cheiro de defunto.

Flávia Andrade, A Viciada

junho 05, 2015

Mochileiros


    Em contraste à sua liberdade, sou um ser humano comum. Não boto uma mochila nas costas para rodar o mundo, só a sacola de compras retornável no ombro para ir ao mercado. Acordo às cinco, enrolo até as seis e saio de casa às sete. Sou tão comum quanto ir de Mario a uma festa fantasia, escolher o sorvete napolitano por completa indecisão e dizer eu te amo para a pessoa errada. Faço as coisas de sempre por dois motivos: não encontro nada mais para fazer e não tenho coragem para procurá-las. Mas você vem com essa completa carga mundana dizendo que quer me levar daqui, e quando vai embora, te procuro. Saio mais cedo, enrolo menos, te busco e digo bobagens até o fim do dia. Atraso os compromissos, escrevo oito textos, olho para o céu como se nele estivesse o sentido da vida. Sou tão comum que quando esses dias acabam, não quero mais levantar, fico desejando que o mundo acabe, que todas as mochilas de viajantes livres sejam despejadas sobre mim, não busco mais nada. Sou tão comum que sofro por quem vai embora, sou quem fica para trás, no mesmo lugar.

Flávia Andrade

junho 03, 2015

O Perfumado


    Antes de começar, me desculpe por estar perfumado e sair por aí transbordando amor por quem quer que me encante. Me desculpe por aparecer na sua televisão por alguns segundos e causar medo de que o resto do mundo fique como eu já sou. Aliás, me desculpe por fazer parte desse mundo. Mas antes, acredito que eu possa me explicar. Perfumados saem de casa tentando encontrar felicidade em si. Não são como lança-perfume, não impregnam em criancinhas, não destroem famílias e, sinto muito, não hipnotizam ou possuem qualquer poder ou magia. Mas temos um perfume que invade das narinas à alma, que perfuma físico e emocionalmente. Perfumados abraçam, beijam, amam, sentem, têm voz e, às vezes, aparecem em propagandas. Perfumados não impõem suas fragrâncias, simplesmente as são. E você, se gostar, pode até se aproximar e pedir um pouquinho ou talvez descobrir dentro de si um cheiro especial próprio de quem ama sem buscar a certidão de nascimento que comprove o sexo. Se não gostar, a gente não impede ninguém de amar, pois o mesmo mundo está cheio de perfumes perpassando seus caminhos. Nos desculpe, então, por deixarmos que nos veja, vamos além de sentir. Nos abraçamos, nos beijamos e amamos. Acima de tudo, vivemos, e perdoe-se se isso te assusta.


Flávia Andrade

junho 01, 2015

balões

eu vi muitos rostos hoje
rostos como balões

às vezes eu me sentia
puxando minha pele pra cima
e perguntando,
"tem alguém aí embaixo?"

há termos médicos para
medo de altura
para
medo de clausuramento em
pequenos espaços

há termos médicos para
inúmeras doenças
diversas

então
deve haver algum termo
para:
"muita gente"

eu tenho sido afetado 
por isso
a minha vida toda:
sempre tem
muita gente

eu vi muitos rostos
hoje, centenas deles
com olhos, orelhas, lábios,
bocas, queixos, tão
adiante...

e
eu estou sozinho
agora
por algumas horas
bebendo

e
eu sinto que estou
me recuperando

o que é uma coisa boa
mas o problema principal
é
que eu sei que terei de
ir lá pra fora
outra vez

balloons, por charles bukowski
traduzido por flávia andrade



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