agosto 06, 2017

Poetas que estragam palavras não são poetas

Scatola di Colore, Ettore Spalletti, 1991.

    Ele era poeta. Dessas poesias frouxas que não se arriscam. Achava que pinta de autor era adquirida ao falar sobre as rimas que fez na última noite. Falava que preferia a solidão, sabendo que na certa morreria se ela se fizesse presente com obrigatoriedade. Confessou-me uma vez que amava a palavra "caos". Ele, aquele porre, porre de quem bebe um copo de cerveja e boceja. Meus ouvidos doeram, frágeis para tanta baboseira. Recebi um exemplar de conjunto de poemas seus. Caos em cada página. Nunca mais usei a palavra em meus textos. Ele a estragou e compreendi. Poetas que estragam palavras não são poetas. Seus poemas têm cheiro azedo, de leite esquecido fora da geladeira que ninguém quis tomar. Não me descem.

Flavia Andrade

julho 27, 2017


    Com o cobertor puxado até abaixo dos olhos, os olhos no teto, o teto com aquelas estrelas falsas que vieram num pacote de seis reais, o valor tão baixo quanto sua vida, sua vida a forçando a se cobrir na cama até passar, o dia não tem fim. Não dorme, mas se sente em um acordar constante que a força a olhar mais uma vez pela janela e perceber o clima frio, o acúmulo de sacos pretos de lixo na lixeira, os poucos carros passando e a trilha sonora distante de filme entediante que dura mais que as horas de trabalho que teve para pagar o ingresso. Puxa mais um pouco o cobertor e some até o próximo ring, ring, ring do celular despertando.

    Olha, eu acho que não vou ficar muito tempo aqui, estou meio mal. O aviso sai da boca de batom vermelho da menina escorada no muro no canto da festa. A pergunta preocupada com sua última frase não vem: o que importa se está meio mal? Meio down, ela diria, se não fosse o desânimo de inserir palavra diferente desde a última vez que falou coisa parecida. E checa o celular três ou quatro vezes a cada música que sai do som ensurdecedor. Limpa as unhas com outras unhas se questionando por que aceitou vir a um lugar sem planejar sendo a pessoa que nunca está preparada para o imediato.

junho 24, 2017

[Eu] sobre você



Eu tropeço em cada canto, mas quando você dorme me concentro no seu rosto. Eu não encaro ninguém, mas sei repousar meu olhar no seu por mais de três segundos. Eu não tenho onde deixar meu corpo para um sossego, mas tenho mais: abraços seus. Eu não sou mais quem eu era, mas com você sou uma pessoa melhor. Eu costumava saber para onde ia e agora só me dou a condição de me perder - desde que você me dê as mãos. E se eu vou só ainda sei que tenho você.

Outra tarde

Minimalist kiss drawing. Original line art illustration. by siret

Olha mais um riso seu no meu portão e ainda não me ajeitei, não tô pronta pra sair. Perdoa meu chamado, não era desses de empolgar, era pra te fazer ficar aqui. Do seu trabalho para o meu sofá eu quero um cafuné, você do lado, a televisão e nós alheios. Perder o tempo é de graça e eu jurei: não te trago mais gasto. Já sou desgaste, quero dias a serem preenchidos e escolhi suas manias para guardar no pote pra viagem.

maio 10, 2017

Das distribuições incoesas

E como as roupas boêmias soavam patéticas, nunca em outras pessoas, apenas nele, ecoando “magistral” como elogio ao cânone literário brasileiro – que nada mais é que sua virilidade acadêmica a ser empalada nos alunos. E os olhos deles todos derretiam para o chão em sono com a memória trabalhando atônita. “Vocês devem esquecer para lembrar”, ressoava, ressoava, ressoava, “esquecer para lembrar”, mas sabiam que se não fossem Funes, o memorioso teriam em troca somente uma nota muxoxa por quem não admite existir no mundo alguém que não tenha lido Borges e ainda assim seja melhor. Como o dia não acabava na sala das portas de vidro e anoitecer pendendo afora, aquário morto para borboletas cintilantes. Como o outro não se calava com as vestes imitadas e um pedestal na mochila para aos pés de seu professor a cada vez que fosse se referir com o mesmo vocabulário exaustivo e vicioso. Vocabulário de quem não vive, palavras mortas para ouvintes semivivos. As teorias perpassadas por “né”, os gritos dignos de um pastor da Igreja da Graça de Deus ou da Assembleia do Malafaia, mas nunca dignos dos meus ouvidos e eu saía do lugar para me encontrar como bem me entendia. Tinha sempre de voltar e a hora no relógio era sempre a mesma. Borges, Clarice, memorizem, esqueçam, memorizem o que eu sou incapaz de lembrar, humanos-máquinas para o rei desta categoria da humanidade: o humano-inútil.  

abril 29, 2017

Não saber nada é sentir tudo

Henn Kim é uma ilustradora que cria imagens conceituais, minimalistas e repletas de significado, que envolvem ácidas críticas à sociedade contemporânea.

    Do momento em que o conheci até agora ainda me faço de incompreensões. De lá para cá eu não soube reconhecer em mim um sentimento específico que me fizesse ficar ao seu lado por tanto tempo, mas fico. Dizem que amor não requer explicação. Entretanto, amor sem razões tira o sono, e eu sinto falta de dormir por uma noite inteira. Talvez você tenha feito alguma coisa comigo, dessas de magia, dessas de prender alguém. Talvez eu tenha feito para mim mesma um desses truques de não saber me desvencilhar de mais ninguém. O que sei, a única coisa, é que de agora em diante, todos os dias: não saber nada é sentir tudo.

abril 24, 2017

Delírio imediato de solidão constante

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    Que seus olhos não alcancem meus passos apressados para longe da sua casa rua à frente, sempre em frente. Que não descubra a coragem que não tive para parar, dizer que estava por perto e decidi trazer meu corpo cansado para o seu sofá em troca de uma conversa longa. Porque agora, sobre você, sou somente silêncio. Ou no máximo palavras entaladas na garganta. Então ando mais rápido, quase corro para longe do seu portão reformado com uma nova cor e tento esquecer que estive tão próxima a ponto de sentir um pouco daquele cheiro da sua sala de estar que tem sempre os móveis em lugares diferentes. Talvez, se eu tivesse me deixado bater palmas buscando curiosa sua presença dentro da casa, você teria se escorado no muro para falar displicentemente sobre o que nenhum de nós quer ouvir sem me oferecer um convite. Um convite para sua hora, seu dia, sua semana. E não sou mais capaz de ser quem não encontra espaço onde quer estar, portanto, percorro caminhos que não me devem nada, caminhos que são descobertas e a eles me faço pertencer. Se me avistar por essas ruas, por esse bairro, talvez até mais distante, eu ando me perdendo para não lembrar que uma vez me encontrei onde não devia.   

Flávia Andrade

abril 23, 2017

Aos sóbrios as prosas

1,061 Likes, 37 Comments - Frédéric Forest (@fredericforest) on Instagram: “Woman waiting - Etude - Flowers, Etude - All drawings, images, photographs and graphic design is…”

 Repete o finalzinho daquele poema do Drummond de novo, por favor  eu peço entornando a garrafa de vinho na taça que, a esta altura, foi esvaziada já umas seis vezes intercalada por duas bocas.
 Eu não devia te dizer, mas essa lua, mas esse conhaque...
 Vinho  corrijo apropriando-me do verso.
 ... Botam a gente comovido como o diabo.

    A estrofe sempre me dá um baque de verdade, como se eu me encontrasse ao lado daquele homem franzino e seus óculos e seus papéis de poeta para sentir a comoção da vida vilipendiada pela embriaguez.

abril 13, 2017

Passado-presente

⚓Sinta e viva,o tempo é agora⚓

Eu sinto que nós podemos recomeçar. Trago um bocado daquela menina que conheceu na bolsa, trago comigo para você não pensar que tocar meu ombro e dizer seu oi musical mais uma vez foi engano. Mas trago de corpo, por inteiro, a nova pessoa com um quê de mistério que o afronta enquanto o vê se sentar meio incerto, meio duvidoso. É que daqueles anos pra cá vim me tornando certeza: olha quem sou. E de você espero umas mudanças, dessas que a gente nunca sabe o que esperar. Mas vejo mais cor nos seus lábios, como se nos últimos anos tivesse agarrado tantas bocas que sobrou na sua a ardência do prazer de todas. Não me desespera a sua falta de timidez de agora, ao contrário: dessa vez podemos ir, sem temer, àquela boate que anos antes passamos em frente com receio de que o segurança barrasse abaixando seus óculos escuros no meio da noite com o estilo do mundo e dizendo: comuns demais. A distância não nos mudou, quem o fez foi o tempo. E se distantes deixamos os anos passar, por perto não há mais hora para ficar contando

abril 09, 2017

Um átimo de sorriso

✨You're good for my soul✨  #regardscoupables #eroticart #eroticdrawing

Um átimo de sorriso. Foi o que durou sua felicidade ao me ver. Eu, por menos que a metade, nunca mais por inteiro, rendendo-me ainda a chamar-me de eu, se agora não era nada. Eu não me olhava mais no espelho, mas se me visse também logo desfaria toda e qualquer brecha de ânimo. Mas sua empolgação desmanchada no ar fez com que pequenas tristezas repousassem como chuva em mim, no ambiente selecionado ao acaso para o encontro que não podia mais ser adiado. Se soubesse antes do que descobriu agora, adiaria por dias intermináveis. Se não tivesse me visto nesse segundo já um pouco passado, continuaria sorrindo tonta para as árvores caminhantes de fora do ônibus.
Devo ter decaído um pouco mais por sua reação, e me tornado decaimento continuado por ver em seus olhos que me olhavam, eu que não era eu, a tristeza de me encontrar no corpo desgastado de um errante que foi para longe se perder. Seus olhos que se tivessem prosseguido com a felicidade seriam capazes de me contar todas as coisas boas que lhe aconteceram nos últimos meses, piscando somente para inserir apostos. Mas a fiz sucumbir à tragédia da minha presença, que não sou eu, mas um apelo de outro.
Pelo sorriso que precisou ser deformado, supus que já vinha sorrindo desde antes, de outra coisa que não estivesse em mim. Foi pela suposição que olhei para fora nos primeiros instantes após perceber seu átimo desaparecido. Não, não desviei os olhos por vergonha ou medo da decepção que causei. Desviei para encontrar no lugar de onde vinha o que não pôde encontrar na pessoa que encontrou, eu, não mais eu. Poderiam ser tantas coisas para o motivo do seu riso, o riso frouxo que se iluminava como memória na minha mente naquela casa que tinha uma plantação de tomates miúdos. Tomates cerejas? O nome eu não lembro, o seu sorriso observando-os, sim. Lá fora mais algumas mesas e cadeiras do pequeno comércio anotado como nosso ponto de encontro, algumas pessoas, alguns carros; o que significava o espaço entre os seus lábios, o seu revelar dos dentes? Qualquer coisa que eu não tivesse trazido comigo, por óbvio.
Tornando a olhá-la, ainda com certa distância, ainda de pé com os braços largados rente ao corpo como se fossem as grandes orelhas do elefante Dumbo que pareciam nunca se adequar. Tornando a olhá-la sob distrações inevitáveis, o que eu já esperava: seus olhos marejando para o choro que a falta de quem eu era tinha avisado que faria neste corpo despertencido. Eu pediria perdão por trazer a falta de mim nos trapos que me formei, mas como vir sem ser resultado do que fui? Tornando a olhá-la, lágrimas. O meu corpo tão não meu, irreconhecível, era ela quem chorava ou eram esses meus novos olhos? Eu teria resposta se não fosse a dor de dente, latejando, interrompendo meus pensamentos a cada vez que os engatava.
Não sei quantos segundos de choro suspenso no ar, que não era ar, mas sufoco de falta, quantos segundos de choro antecederam meu convite balbuciado: senta aqui comigo. Com esse desconhecido. Vi seus passos oscilantes em direção ao banco de couro vermelho para duas pessoas encostado na parede, e suas pálpebras baixas evitando um diálogo silencioso e dando como obrigação meu lugar no banco à frente. Os espaços ao lado de cada um de nós restaram para sobrepor nossos sentimentos transformados em bichos selvagens atracando-se para cima da mesa enquanto, parados, pensávamos num meio de não ser mais aquilo: ser o que já tinha sido para refazer o que esperamos tanto para reacontecer. Estendi a mão direita para alcançar a sua esquerda, mas o garçom distraído ao largar dois cardápios a nossa frente interrompeu meu maior gesto de coragem. Deste ponto em diante fui só receio.
Eu parei para escrever um texto ontem, suas palavras do passado ecoando num presente incabível. Qual tom meu poderia dizer de volta que sua escrita dependia de mim e longe, tão longe como essa proximidade física e forçada de agora, não era nada mais que vocabulário arremessado no papel. Que tom dela serviria para me acalmar do mal que causei. Conseguiu terminar? Não. Ficou parado lá. Mas escreveu bastante? Duas páginas congeladas. Era sobre aquelas coisas? Aquelas coisas que eu conhecia. Era sobre te ver de novo. Receio. Receio. Receio. Nem mais uma palavra. Meu silêncio, sua mão soltando da minha. A minha que até então tinha tido dificuldade de encaixar com seus dedos, desproporcional como todo nosso dia compartilhado. Como se o excesso fosse o que não queríamos e o que faltava fosse aquilo de se dar certo. Estávamos num rodízio de comida vencida.
Meio de canto de olho, a visão de suas mãos trazendo da bolsa para o cigarro um isqueiro trêmulo. Tremia como minha pálpebra direita, atrapalhando a concentração. A dor de dente novamente. Latejando. Meu eu antigo não tinha tantos efeitos colaterais quando a via, só depois: quando lembrava. Ela também não trazia consigo essas fraquejadas desinibidas, era mais forte que seu colar herdado com pingente de peixes. O que houve com a corrente? Ficou para trás, acho que perdi naquele bar que a gente ia. Eu que não era eu precisava de um leito para enfermos ou daqueles tomates cerejas? tomates cerejas e um saleiro, salgando e mordendo o mesmo gosto do seu riso, do seu átimo perdido. Ai, o que eu não daria para voltar a ser o que a completava e fazia ser o que não sou mais. Eu voltaria e encontraria a corrente. Mas não volto nem a mim.
Olha, incomodada como uma unha quebrando na carne, você não precisa ficar aqui. Um gole de água da torneira no copo com três pedras de gelo. Se não estiver curtindo, sabe que eu não ligo, pode ir; sua voz direta, sem tropeçar na minha defensiva. A dor pontual em meu peito, corte rente. Ela sentia ainda aquela empatia de não se deixar sentir sozinha, dando espaço a me pronunciar em nome de nós: se não estamos bem, vamos pra casa. Mas se fôssemos, lá fora nos lembraríamos da incompletude que restou dos nossos destinos sul e norte, separados. Lá fora os pés virariam para trás, não andariam mais para frente. Eu não estou incomodado, você está? Um novo riso de um pouco mais que um átimo, porque dele apossou-se o nervosismo. Acho que não estou, não. Um riso meu um pouco mais longo que o dela. O dela em resposta, duradouro. O meu sobre o seu. Uma palma repousando de leve na mesa formulando outro som. Enfim nossa orquestra.
Lembra daquele... O que você vai fazer hoje? O passado se deixou de súbito interromper. Aliviou nossos corpos nos bancos, as feras pararam de brigar, voltaram para dentro de nós, leves, calmas. Para não buscar no repouso o reverso, a minha voz saiu baixa para a sua pergunta do presente: o que você estiver a fim de fazer. Olhando em seus olhos, um pouco mais brilhosos, a devolução ao meu corpo de uma parte daquele meu eu. Era, então, o que precisávamos fazer? Apenas estar presentes. Se fosse; adeus, receio. Eu ainda não fui em um lugar que parece muito... Vamos. Tomei a coragem de feras que já enfrentaram o mundo do outro e voltaram sãs. Talvez o amor sirva melhor para turistas.
Pegamos o ônibus que parava em frente ao local, vimos da janela a árvore que suspeitei que fosse o motivo do seu primeiro riso, não estive errado. Do seu colo ao meu um conforto para as mãos readequadas. O destino já não era mais importante, só importava estar. E estar é segundo pouco, são pequenas ações de novo, de novo, de novo. Estar não é passado, vem dele como futuro e instaura-se como presente até evaporar. E, então, é preciso estar de novo. Visitamos cada espaço de estado, experimentamos. Tornando a olhá-la, somente seus olhos, nariz, boca, riso. Nada mais. Poupamos os significados maiores, porque dali iríamos embora. Dali para outro presente. Para estar presente, a resposta recuperou-se em outro átimo. 

janeiro 17, 2017

Reencontro

Eu quis encontrá-lo no lugar que prometi não ir mais, porque sou de fazer o que digo que não vou. Peguei esse costume quando por tanto tempo fiquei ao seu lado jurando para mim que não ficaria por mais nenhum dia. Talvez você seja mesmo minha contradição personificada. E, sendo assim, toda vez que eu disser adeus, pode saber, eu volto. Com as bagagens, com as risadas da última piada que você deixou no ar quando não soube mais o que dizer. E eu o encontro, chamo para umas bebidas, faço da sua casa a minha por mais umas semanas.

Despertar

Não custa muita tinta dizer o que sei sobre você, mas acaba com os meus papéis descrever o que eu não sei. Talvez, do início até agora, nós dois — em conjunto, sejamos nada mais do que incompreensão. E a vida às vezes é feita para viver às cegas mesmo. Mas o que acontecerá quando abrirmos os olhos

Fique bem

Eu sinto muito pelo que você está passando agora. Sinto muito porque já senti igual em outros tempos e abraço sua dor como velha amiga minha. A vida abre portas e nos empurra para entrar, sem que queiramos. Mas eu quero que você volte quando puder, e sei que poderá voltar. Perdoe a maldade do mundo, perdoe para o seu coração se aconchegar em coisas boas. Perdoe a si mesma também, não há nada de errado em se deixar ir quando nada mais lhe pede para ficar. Eu desejo que fique bem para enxergar o quanto é forte, que abra os olhos para dentro de você. Porque, da melhor e mais simples maneira que posso dizer, você é incrível.
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