Um
átimo de sorriso. Foi o que durou sua felicidade ao me ver. Eu, por menos que a
metade, nunca mais por inteiro, rendendo-me ainda a chamar-me de eu, se agora
não era nada. Eu não me olhava mais no espelho, mas se me visse também logo
desfaria toda e qualquer brecha de ânimo. Mas sua empolgação desmanchada no ar
fez com que pequenas tristezas repousassem como chuva em mim, no ambiente
selecionado ao acaso para o encontro que não podia mais ser adiado. Se soubesse
antes do que descobriu agora, adiaria por dias intermináveis. Se não tivesse me
visto nesse segundo já um pouco passado, continuaria sorrindo tonta para as
árvores caminhantes de fora do ônibus.
Devo
ter decaído um pouco mais por sua reação, e me tornado decaimento continuado
por ver em seus olhos que me olhavam, eu que não era eu, a tristeza de me
encontrar no corpo desgastado de um errante que foi para longe se perder. Seus
olhos que se tivessem prosseguido com a felicidade seriam capazes de me contar
todas as coisas boas que lhe aconteceram nos últimos meses, piscando somente
para inserir apostos. Mas a fiz sucumbir à tragédia da minha presença, que não
sou eu, mas um apelo de outro.
Pelo
sorriso que precisou ser deformado, supus que já vinha sorrindo desde antes, de
outra coisa que não estivesse em mim. Foi pela suposição que olhei para fora
nos primeiros instantes após perceber seu átimo desaparecido. Não, não desviei
os olhos por vergonha ou medo da decepção que causei. Desviei para encontrar no
lugar de onde vinha o que não pôde encontrar na pessoa que encontrou, eu, não
mais eu. Poderiam ser tantas coisas para o motivo do seu riso, o riso frouxo
que se iluminava como memória na minha mente naquela casa que tinha uma
plantação de tomates miúdos. Tomates cerejas? O nome eu não lembro, o seu sorriso
observando-os, sim. Lá fora mais algumas mesas e cadeiras do pequeno comércio
anotado como nosso ponto de encontro, algumas pessoas, alguns carros; o que
significava o espaço entre os seus lábios, o seu revelar dos dentes? Qualquer
coisa que eu não tivesse trazido comigo, por óbvio.
Tornando
a olhá-la, ainda com certa distância, ainda de pé com os braços largados rente
ao corpo como se fossem as grandes orelhas do elefante Dumbo que pareciam nunca
se adequar. Tornando a olhá-la sob distrações inevitáveis, o que eu já
esperava: seus olhos marejando para o choro que a falta de quem eu era tinha
avisado que faria neste corpo despertencido. Eu pediria perdão por trazer a
falta de mim nos trapos que me formei, mas como vir sem ser resultado do que
fui? Tornando a olhá-la, lágrimas. O meu corpo tão não meu, irreconhecível, era
ela quem chorava ou eram esses meus novos olhos? Eu teria resposta se não fosse
a dor de dente, latejando, interrompendo meus pensamentos a cada vez que os
engatava.
Não
sei quantos segundos de choro suspenso no ar, que não era ar, mas sufoco de
falta, quantos segundos de choro antecederam meu convite balbuciado: senta aqui
comigo. Com esse desconhecido. Vi seus passos oscilantes em direção ao banco de
couro vermelho para duas pessoas encostado na parede, e suas pálpebras baixas
evitando um diálogo silencioso e dando como obrigação meu lugar no banco à
frente. Os espaços ao lado de cada um de nós restaram para sobrepor nossos
sentimentos transformados em bichos selvagens atracando-se para cima da mesa
enquanto, parados, pensávamos num meio de não ser mais aquilo: ser o que já
tinha sido para refazer o que esperamos tanto para reacontecer. Estendi a mão
direita para alcançar a sua esquerda, mas o garçom distraído ao largar dois
cardápios a nossa frente interrompeu meu maior gesto de coragem. Deste ponto em
diante fui só receio.
Eu
parei para escrever um texto ontem, suas palavras do passado ecoando num presente
incabível. Qual tom meu poderia dizer de volta que sua escrita dependia de mim
e longe, tão longe como essa proximidade física e forçada de agora, não era
nada mais que vocabulário arremessado no papel. Que tom dela serviria para me
acalmar do mal que causei. Conseguiu terminar? Não. Ficou parado lá. Mas
escreveu bastante? Duas páginas congeladas. Era sobre aquelas coisas? Aquelas
coisas que eu conhecia. Era sobre te ver de novo. Receio. Receio. Receio. Nem
mais uma palavra. Meu silêncio, sua mão soltando da minha. A minha que até
então tinha tido dificuldade de encaixar com seus dedos, desproporcional como
todo nosso dia compartilhado. Como se o excesso fosse o que não queríamos e o
que faltava fosse aquilo de se dar certo. Estávamos num rodízio de comida
vencida.
Meio
de canto de olho, a visão de suas mãos trazendo da bolsa para o cigarro um
isqueiro trêmulo. Tremia como minha pálpebra direita, atrapalhando a
concentração. A dor de dente novamente. Latejando. Meu eu antigo não tinha
tantos efeitos colaterais quando a via, só depois: quando lembrava. Ela também
não trazia consigo essas fraquejadas desinibidas, era mais forte que seu colar
herdado com pingente de peixes. O que houve com a corrente? Ficou para trás,
acho que perdi naquele bar que a gente ia. Eu que não era eu precisava de um
leito para enfermos ou daqueles tomates cerejas? tomates cerejas e um saleiro,
salgando e mordendo o mesmo gosto do seu riso, do seu átimo perdido. Ai, o que
eu não daria para voltar a ser o que a completava e fazia ser o que não sou
mais. Eu voltaria e encontraria a corrente. Mas não volto nem a mim.
Olha,
incomodada como uma unha quebrando na carne, você não precisa ficar aqui. Um gole de água da torneira no copo com três
pedras de gelo. Se não estiver curtindo, sabe que eu não ligo, pode ir; sua voz
direta, sem tropeçar na minha defensiva. A dor pontual em meu peito, corte
rente. Ela sentia ainda aquela empatia de não se deixar sentir sozinha, dando
espaço a me pronunciar em nome de nós: se não estamos bem, vamos pra casa. Mas
se fôssemos, lá fora nos lembraríamos da incompletude que restou dos nossos
destinos sul e norte, separados. Lá fora os pés virariam para trás, não
andariam mais para frente. Eu não estou incomodado, você está? Um novo riso de
um pouco mais que um átimo, porque dele apossou-se o nervosismo. Acho que não
estou, não. Um riso meu um pouco mais longo que o dela. O dela em resposta,
duradouro. O meu sobre o seu. Uma palma repousando de leve na mesa formulando
outro som. Enfim nossa orquestra.
Lembra
daquele... O que você vai fazer hoje? O passado se deixou de súbito
interromper. Aliviou nossos corpos nos bancos, as feras pararam de brigar,
voltaram para dentro de nós, leves, calmas. Para não buscar no repouso o
reverso, a minha voz saiu baixa para a sua pergunta do presente: o que você
estiver a fim de fazer. Olhando em seus olhos, um pouco mais brilhosos, a
devolução ao meu corpo de uma parte daquele meu eu. Era, então, o que
precisávamos fazer? Apenas estar presentes. Se fosse; adeus, receio. Eu ainda
não fui em um lugar que parece muito... Vamos. Tomei a coragem de feras que já
enfrentaram o mundo do outro e voltaram sãs. Talvez o amor sirva melhor para
turistas.
Pegamos
o ônibus que parava em frente ao local, vimos da janela a árvore que suspeitei
que fosse o motivo do seu primeiro riso, não estive errado. Do seu colo ao meu
um conforto para as mãos readequadas. O destino já não era mais importante, só
importava estar. E estar é segundo pouco, são pequenas ações de novo, de novo,
de novo. Estar não é passado, vem dele como futuro e instaura-se como presente
até evaporar. E, então, é preciso estar de novo. Visitamos cada espaço de
estado, experimentamos. Tornando a olhá-la, somente seus olhos, nariz, boca,
riso. Nada mais. Poupamos os significados maiores, porque dali iríamos embora.
Dali para outro presente. Para estar presente, a resposta recuperou-se em outro
átimo.